14 de julho de 2011

FRANCISCO BOSCO ESCREVE SOBRE LETRA E MELODIA

A canção é um gênero artístico que vem sendo estudado também pelos departamentos de Letras. No Brasil, destacam-se nomes como Luiz Tatit, José Miguel Wisnick, Cláudia Neiva Matos e tantos outros. O texto abaixo, de Francisco Bosco, aborda o assunto de modo interessante e apontando para os eixos distintos do conjunto cancional: a letra, a melodia, a dicção do intérprete, a harmonia, o ritmo etc.
REPRODUÇÃO DO TEXTO DE FRANCISCO BOSCO (leia no original)
'Alegria da melodia'

Em artigo, o ensaísta e letrista Francisco Bosco fala sobre os 'momentos 'Shimbalaiê' da música

RIO - Ao aceitar responder, por e-mail, ao GLOBO sobre os mistérios que envolvem palavras como "Tchubaruba" e "Shimbalaiê", o ensaísta e letrista Francisco Bosco acabou se empolgando e enviou um artigo completo sobre o tema. Leia abaixo o que Bosco pensa sobre esses "momentos alegres da história da canção".
Eu acho que, na canção, a melodia tem certa autonomia que a letra não tem (ou só tem raramente). Ou seja, poder-se-ia suprimir a letra de muitas canções e ainda assim restaria uma bela melodia, que teria vida autônoma. Várias vezes, senão sempre, eu recebi melodias e me encantei com elas do jeito que elas vieram, sem letra. (Algumas vezes até temi estragá-las colocando letras.) Pegue, por exemplo (tá certo que é um exemplo e tanto), uma canção como "Tarde", de Milton Nascimento; ela poderia sobreviver sem a letra. É claro que a letra com a melodia forma a experiência única de sentido que é a canção, e que decorre do entrelaçamento nevrálgico da letra e da melodia, ambas se determinando reciprocamente (mais harmonia, ritmo, dicção do intérprete, etc.). Mas, falando concretamente, é comum dedicarem-se discos com versões apenas instrumentais, isto é, sem letra, de canções de algum compositor, mas o contrário é quase sempre um equívoco: livros com letras de canção, sem a música, costumam ser uma obra que fica num limbo, nem poesia, nem canção.
É dessa autonomia da melodia que vêm todos os "shimbalaiês" da história da canção, e que são inúmeros. O "shimbalaiê" é uma passagem da palavra ao som, da transitividade do semântico à intransitividade do melódico. Apesar de soar abstrata e acadêmica, essa frase é bem precisa. É que a linguagem verbal, o que a define, é sua capacidade de representar as coisas, ao passo que a música, ao contrário, talvez seja a mais irrepresentável das linguagens. Se você me permite, vou entrar num nível mais filosófico agora. Ocorre que representar o mundo é, de certo modo, impossível, porque a linguagem sempre produz o objeto no momento mesmo que acredita o estar conhecendo. É a questão epistemológica, que moveu (ou paralisou) séculos de filosofia: quem vem primeiro, a linguagem ou o objeto? No popular, é o famoso "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?". Não há como saber, pois é como querer pegar a própria sombra. Então, de certo modo a linguagem verbal é o campo do erro. Mas a música, não. Ela não representa nada, ela não é outra coisa além de si mesma. Ela é o que é (o que chamo de intransitivo). É por isso, no meu entender, que Nietzsche disse que "sem a música, a vida seria um erro".
Então, voltando ao centro do assunto, eu acho que o "shimbalaiê" é um momento em que a linguagem verbal não se aguenta e deseja ser música, deseja livrar-se do fardo de representar, de ser outra coisa que não ela mesma. É como se a linguagem não resistisse à alegria da música e se transformasse em música. É como se ela se desse conta de que o que a música está sentindo não se pode expressar, não há palavra que chegue (pois a palavra nunca chega, ela sempre perde o trem). Então ela desiste de ser palavra e vira som, puro som. E aí ela fica feliz, e é por isso que todo mundo fica feliz quando ouve. É uma libertação da palavra. Você me pergunta se eu sei dizer o que significa "shimbalaiê". É claro que sei. "Shimbalaiê" significa isso, ou seja, a alegria da música, a pureza da música, o afeto que a música está levando ao mundo. Assim, quando se diz que "Shimbalaiê" não quer dizer nada, isso está corretíssimo, mas no sentido contrário do que geralmente se intenciona: "Shimbalaiê" não quer dizer nada porque deixou de ser significação e passou a ser. Ponto.
Ou você acha que algum verso poderia representar melhor a alegria da melodia de "Taj Mahal" do que essas sílabas esquecidas de si, em plena folia, travestidas de música: "Têtêtêtê-têtêrêtêtê..."? Enfim, esses momentos "shimbalaiê" são os momentos mais alegres da história da canção, mais verdadeiros e mais impactantes - precisamente porque não significam nada.