25 de agosto de 2011

SOBRE LITERATURA (introdução)

Chuva (Goeldi, 1957)

Resumo: em salas de aula, um assunto que volta e meia vem à tona é a questão de até onde uma atividade de interpretação de texto tem validade, uma vez que há aqueles que defendem que o entendimento de um texto seria um ato plenamente subjetivo. Este artigo parte dessa ideia para tentar provar que ela, colocada dessa forma, é, senão falsa, pelo menos incompleta. 

            Faz parte do anedotário estudantil um comentário, atribuído ao poeta Carlos Drummond de Andrade, no qual ele teria afirmado que se houvesse de responder uma certa questão no vestibular sobre um poema de sua autoria teria errado, pois ele não concordava com a resposta dada pelo gabarito. Alguns alunos citam isso quando nas aulas de literatura o assunto é a interpretação dos textos literários, usam tal exemplo para reforçar a opinião que carregam consigo de que a interpretação é subjetiva, portanto, cada um lê do jeito que melhor lhe aprouver.
            Sempre que isso ocorre vejo o quanto é necessário insistirmos em certas noções elementares de teoria literária, que tanta falta fazem, não sei ao certo se somente aos alunos, mas também a muitos professores do fundamental e médio, responsáveis diretos pelo (des)conhecimento de certos procedimentos básicos de leitura interpretativa que os alunos recorrentemente demonstram.
            Se formos verificar a autenticidade da anedota acima (dita pelos alunos na maioria das vezes como uma sólida verdade), vamos perceber que talvez se trate de uma afirmação de Roberto Drummond, autor de “Hilda Furacão” – e não de Carlos, o poeta de “No meio do caminho”. Roberto Drummond contava que resolvera prestar o vestibular e soube que seu livro “A morte de D. J. em Paris” serviria de fonte para algumas questões. Ao corrigir sua prova, percebeu que havia errado as questões sobre seu próprio livro. Verdade ou não, o caso assumiu ares de “fato” ocorrido, apesar do caráter folclórico. Daí para a situação ser atribuída ao outro Drummond foi um pulo.
            Reforça ainda a minha preocupação, a opinião que algumas pessoas têm a respeito das aulas de Literatura, quando afirmam que para estudá-la basta ler[1]  e dizer o que achou. Enfim, que se trata de um simples caso de “gostei” ou “não gostei”.
            Uma vez que defendo ser possível e necessário desenvolver práticas de leituras com base objetiva e com forte carga de reflexão e postura crítica - o que auxiliaria em muito a formação de leitores capazes de interagir profundamente com os textos do mundo -, torna-se uma questão fundamental discernir certos pontos acerca deste problema, a começar pela revisão do mito romântico do “gênio criador”.
            Conforme sabemos, o romantismo é o gênero burguês por excelência, feito sob encomenda para realçar e disseminar os valores, a estética, a ética e a ideologia da nova classe, então emergente. Um progressismo calcado no “theatrum mundi” da urbanidade, na iniciativa empreendedora do indivíduo e na difusão do conhecimento gerou, por conseguinte, o culto à celebridade, ao individualismo e aos personalismos de seus atores, tornando a estética romântica receptiva a todo tipo de idiossincrasias e de mitificações do "eu". Em meio a esse quadro dissemina-se a idéia de que o ser criador está divinamente e totalmente incrustado em sua obra e, ainda mais grave, que o ato criador é a manifestação fortuita do dom que todo artista de gênio possui, por isso, sua obra é então compreendida como feita de uma só tacada e, desde já, estando acabada e pronta, não necessitando de retoques, conhecimento técnico, esforço nenhum. Arte literária, compreendida dessa maneira, é dom, dádiva, e, sendo assim, é atribuição dos eleitos pelas musas revelar ao mundo o brilho de suas almas. Fernando Pessoa explora engenhosamente esta crença do leitor ingênuo ao explicar o “nascimento” de Alberto Caieiro. Mas quem lê com atenção o brilhante autor de "Mensagem", sabe que ele afirma que o poeta é "um fingidor". O recado é claro: desconfiem do que os autores dizem, não só em suas obras, mas sobre si mesmos em depoimentos, cartas e entrevistas.
            Essa crença do leitor ingênuo, potencializada pelo conhecido fervor juvenil dos autores românticos, fundamentaram a concepção de que o poema é o autor, de que o texto é o registro fiel de um instante sentido e experimentado por uma alma de gênio e sensibilidade. O jovem, em geral, se imagina único, original e especial, com o resto do universo girando ao redor de si e os nossos românticos não foram exceção à regra. É bom lembrar ainda que o comportamento juvenil nem sempre termina com o fim da juventude.
            Mas o bonde da história não fica parado. Por isso, percebemos que as mesmas forças que impulsionaram a conformação dessa sociedade mitificadora do gênio, geraram as transformações científicas que alteraram o pensamento humano nos últimos séculos. O Renascimento e o Iluminismo foram responsáveis, em grau maior ou menor, pelos esforços de construção de sociedades baseadas na solidez de suas instituições, assim como pela valorização da razão e do pensamento crítico.  
            E foi este empreendimento da razão que permitiu a construção de um conjunto de teorias e práticas capazes de alterar aquela percepção mitificadora e simplista que o senso comum atribuía ao escritor e à sua obra.
            Os principais responsáveis por essa mudança na apreciação do texto literário, ou pelo menos pela proposta de mudança, foram os estudiosos do século XX, especialmente os chamados “formalistas russos”, seguidos pela “nova crítica” e pelo “estruturalismo” literário. Não ignoramos a contribuição do século anterior, promovida pelos próprios autores, cada vez mais conscientes do ato de escrever (nosso Machado de Assis é brilhante nesse aspecto), pelos poetas simbolistas e pelas experimentações das vanguardas, além das importantes contribuições de historiadores, críticos e pensadores. Mas é no XX que a Teoria da Literatura irá se afirmar como sistema objetivo de compreensão do fenômeno literário.
            Os manuais escolares de ensino de língua materna e de literatura trazem embutidas em suas propostas de leituras e atividades de interpretação inúmeras contribuições da Teoria da Literatura (na verdade, Teorias). Mas infelizmente há ainda uma mistura incoerente de propostas de abordagem do literário por estes manuais que confundem o leitor em sua busca pela leitura objetiva dos textos literários.
            Daí a importância em organizar melhor as ferramentas teóricas que habilitem o leitor atento e desfaçam de vez a ideia de que a interpretação de um texto é puramente pessoal e que "cada um entende do seu jeito". Mas isto fica para outro texto.

            SUGESTÃO DE LEITURAS:
Domício Proença Filho. A Linguagem Literária. Ed. Ática.
Roberto Acízelo de Souza. Teoria da Literatura. Editora Ática (Série Princípios).


[1]  Neste caso, “ler” pode significar olhar um resumo ou assistir ao filme.